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Numa cidade feita de diversidade, como é o Porto, “o povo é quem mais ordena”. Num tempo em que se questiona o valor da arte e qual o seu papel numa sociedade em contantes alterações, o que pode fazer a diferença numa programação cultural? O público é, seguramente, o elemento-chave para responder a esta questão. No ano em que o programa municipal comemora a primeira década de vida, sentamo-nos com um convidado especial: Manuel Nogueira, o espectador mais assíduo do Cultura em Expansão.
“Às vezes ouço passar o vento e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido” – Fernando Pessoa
Fernando Pessoa, que assina a frase, parece ser o autor visionário que entendeu a importância da vida, o essencial, o fundamental. Colocou as emoções como principal motor de uma vida em que as sensações devem ser coordenadas claras de um mapa que deve guiar o nosso caminho.
A frase escrita numa folha de papel A4 é-nos entregue no final do encontro que durou mais de hora e meia na Associação de Moradores da Bouça, por entre atrasos (poucos) de quem chega e que mau tempo ajuda a justificar.
A citação é entregue juntamente com imagens de um tempo que já não existe, onde só havia o preto e o branco. De um lado, a pobreza que sorria perante a ausência de esperança; do outro, uma faustosa festa celebrava o Ano Novo de 1967. E mais uma frase: “De certo modo a ‘Cultura em Expansão’ é um retirar das velhas estantes os entusiasmos, o nosso legado, a ligação, as pessoas, os motivos e os lugares, o tal Porto antes que desapareça”. Com nota de rodapé: Porto, 9 de julho de 2024. Manuel Nogueira.
É ele que está à nossa frente, convidado para integrar a lista de “ilustres” para um ciclo de artigos sobre os dez anos do Cultura em Expansão. Não foi escolhido ao acaso. Manuel é, de há uns anos a esta parte, o mais assíduo espectador do programa municipal. Tenta não falhar nenhum espetáculo nos quatro territórios que, atualmente, recebem as propostas de programação definidas a várias mãos.
Aos 60 anos (“e meio!”), natural de Ramalde do Meio e com casa “ainda no bairro”, sempre viveu no Porto, apesar de se orgulhar de conhecer o país de lés a lés, sem esquecer a vizinha Espanha. Mas sempre foi fiel à terra de origem, “porque a sinto como minha, para o bem e para o mal”.
Manuel e a liberdade de pensar e agir
Num tempo diferente, em que a Liberdade (assim mesmo, com letra maiúscula) era apenas uma palavra e a realidade uma miragem, viveu o período de formação com um professor que o marcou para a vida. “Tinha um grande conhecimento do país, deu-nos uma visão alargada do que era Portugal, não apenas as grandes cidades, mas também o Interior”.
Foi a partir dessa visão que começou a construir as suas opiniões, a formar a sua linha de conhecimento, a abrir-se a novas experiências. “Não sei o que é a ditadura, porque sempre vivi em Liberdade. Fui criado neste espírito desde novo, numa família que respeitava todos por igual. Éramos livres, fui criança no tempo justo de ser criança, em que o tempo tinha um ritmo mais lento, como dizia a minha avó”, resume Manuel.
Essa Liberdade, que repete várias vezes ao longo da conversa, foi o ingrediente-chave para ser o que é hoje, um homem de ideias concretas, de pensamento aberto ao desconhecido, de fome e sede de conhecer sempre mais. Foi por isso que, depois de experiências em projetos comunitários, conheceu o Cultura em Expansão em 2017, “num encontro em Serralves, em que me disseram bem e mal deste projeto”. “E quando ouço opiniões tão diferentes é porque tem valor”, assume.
Rapidamente integrou o espetáculo “A-jun-ta-men-to”, dinamizado pela ondamarela e com a participação de vários elementos das diferentes freguesias da cidade, em 2020. Foram ensaios em vários locais da cidade, em pleno tempo de pandemia, por entre operações STOP e cordões sanitários impostos pela condição social da altura.
“Mas só tenho a dizer coisas boas desse projeto e das pessoas que o fizeram, como o Ricardo [Baptista] e a Ana Bragança. Subir ao palco do Rivoli acabou por ser o momento que defraudou as expectativas de alguns dos participantes, mas para mim foi um dos melhores momentos da minha vida. Ter camarins, luzes, figurinos, foi um sonho tornado realidade e, depois disso, já podia morrer. Tinha cumprido um dos meus objetivos”, revela Manuel.
Da plateia passou para o palco e do palco acabou por regressar à plateia, com a regularidade de um espectador que marca lugar antecipado para a temporada toda. Tornou-se um dos rostos familiares que, todas as semanas, se senta nos diferentes lugares que acolhem as apresentações. “E nunca saí de um espetáculo a meio, mesmo que goste mais ou menos”. Porque, nesses momentos, consegue fechar os olhos e viajar. “É como se fosse um travão no tempo, um tempo só para nós”.
De Bonga a Foster, com um panado e dois dedos de conversa
Dos espetáculos que viu, ou não viu mas foi como se visse, destaca o concerto de Bonga, “onde estavam 300 pessoas no interior do recinto, 300 pessoas cá fora e 150 pessoas na rua, todos a dançar”, num momento de encontro mágico, “e com direito a caldo verde”.
Mas há mais: o encontro com Lena d’Água, num espetáculo em que os problemas técnicos foram contornados com a boa vontade de todos, e que até envolveu um abraço de Manuel à cantora no final da apresentação; as performances dos Bandua, “onde todos dançaram ao som de um estilo difícil de catalogar”, e dos Retimbrar, “que conheço bem”; até à apresentação mais intimista de Josephine Foster, com um momento arrepiante que nunca irá esquecer. “Quando ela começou a tocar piano fez-se um silêncio total. Houve pessoas que se sentaram no chão, como se estivéssemos a fazer uma grande viagem pelo universo desconhecido”, destaca.
É provável que o encontremos mais na Bouça ou na Pasteleira, pela programação proposta, mas, acima de tudo, por um ritual que não dispensa neste tipo de ocasiões. “Há três momentos dentro destas apresentações: o ‘antes’, onde jantamos um panado no pão, uma sopa ou um cozido, consoante o local onde estamos; o espetáculo propriamente dito; e o ‘depois’, onde as pessoas se deixam ficar a falar sobre o que acabaram de ver e a trocar impressões”, conta.
É deste ritual que (também) não abdica, esta terapia semanal que encontra no Cultura em Expansão e da qual continuará a fazer parte, porque só aqui, assume, consegue ser surpreendido pelas propostas e pela diversidade de pessoas que lá encontra. “O Cultura em Expansão não tem política, não tem cor de pele, não tem religião, tendências ou gostos sexuais. É um local onde todos se encontram, é uma ‘big family’”, resume.
É aqui, afinal, que “os nossos se encontram com as nossas coisas”, revela. É neste local, nesta data sem tempo, “onde é possível fazer pontes e não muros”.
Porque, diz Manuel, em tempos “de guerra, como aquele que vivemos hoje por todo o mundo, só a arte nos pode safar”. A arte feita por todos, pensada para todos, onde todos são envolvidos, nessa Liberdade a que se habituou deste os tempos em que ouvia o professor, na escola, a falar dos limites que iam muito para lá do horizonte que via da janela.
Texto: José Reis
Fotos: Nuno Miguel Coelho